A Noiva Cadáver: um crime contra a vida ou contra o patrimônio?

Por Ana Beatriz Rodrigues 

Cena do filme “A noiva cadáver” de Tim Burton

Não pude deixar de perceber o impacto do artigo sobre violência doméstica nem dos
debates que desse tema surgiram nesta cidade, quer em rádios, quer por lives do
Instagram e sou muito grata por cada um que parou para pensar no assunto. Ainda sobre
esse tema (violência doméstica) escrevo o presente artigo.

Nunca imaginei que um filme aparentemente infantil estreado há 15 anos pudesse me dar
tanto pano pra manga.

O filme de Tim Burton, como é típico nele, aborda de maneira cômica e suave temas
pesados e obscuros. Partido do ponto em que você, leitor, não tem a menor obrigação de
ter a mesma referência filmográfica que eu, me sinto na obrigação de explicar brevemente
a obra sem soltar grandes spoliers (como se fosse possível chamar de spolier contar o fim
de um filme que tem quase metade da minha idade).Para isso, tomei a liberdade de pegar
um resumo da wikipédia pro próximo parágrafo por motivos óbvios: minha praia é o direito
penal e não fichamento de obras, então aí vai:

As famílias de Victor e Victoria estão arranjando seu casamento. Nervoso com a
cerimônia, Victor vai sozinho à floresta para ensaiar seus votos. No entanto, o que ele
pensava ser um tronco de árvore na verdade é o braço esquelético de Emily, uma noiva
que foi assassinada depois de fugir com seu amor. Convencida que Victor acabara de lhe
pedir a mão em casamento, Emily o leva para o mundo dos mortos, mas ele precisa
retornar rapidamente antes que Victoria se case com o malvado Lorde Barkis.

O filme se passa na era vitoriana, onde era comum a existência do dote, que são os bens
transferidos da família da noiva para o noivo ou sua família. Sim, como se a mulher fosse
uma mercadoria da qual a família paga para se livrar. Ou uma moeda de troca.

Devo retomar o subtítulo deste artigo: foi um crime contra a vida ou contra o patrimônio?
Como a regra no direito é que “depende”, no direito penal não poderia ser diferente.
Depende. Depende do dolo, ou seja da intenção do agente.

Evidente que Lorde Barkins era um vigarista que se casava com moças mais novas e
ricas para matar e rouba-las, mas isso é, por si só, suficiente para configurar um
feminicídio?

O feminicídio nada mais é que uma espécie de homicídio qualificado. Previsto no art 121,
VI, VII §2 , o feminicídio exige que seja praticado em violência contra mulher, em contexto
caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre
mulher em situação de vulnerabilidade. É uma violência de gênero.

Para se enquadrar como feminicídio, deveria ser praticado contra mulher movido pelo
sentimento de desdém a essa qualidade da vítima.

Na canção que expõe a morte de Emily há uma passagem que diz “Quem tem amor não
precisa de bens Exceto umas coisas, por precaução. Como as jóias da casa, um anel de um milhão Junto ao cemitério, sob o flamboaiã. Um nevoeiro escuro, as três da manhã. Ela pronta pra ir, mas e o galã? (e então?) Ela esperou (e então?). No meio das sombras, seria o rapaz? (e então?). O coração batendo! (e então?). E então queridos tudo ficou escuro. Quando ela abriu os olhinhos, tava morta então. As jóias roubadas, que desilusão”.

Que nos faz pensar: seria então um crime contra o patrimônio?! Mas qual deles?

Se você assiste Cidade Alerta provavelmente pensou em “latrocínio- roubo seguido de
morte”.

Meus ouvidos ardem toda vez que escuto isso. Na verdade só arde um porque eu não
escuto do outro. Gostaria de fazer um parênteses, inclusive: ouvir que “flagrante só dura
24horas” e que “latrocínio é roubo SEGUIDO de morte: são coisas que realmente me
fazem pensar que é melhor ser surdo do que ouvir certas coisas.

Mas você sabe o que é latrocínio? É uma qualificadora do roubo. Mas o que isso
significa?! Significa que é uma hipótese de roubo em que a lei dá uma pena maior no
lugar de dizer que deve ser aumentada de terça, sexta parte ou metade.

O latrocínio é o roubo que RESULTA em morte. É crime no qual a morte se dá para que o
agente tenha a subtração da coisa, vindo a persistir mesmo se ele não consiga levar a
coisa consigo. A morte pode se dar antes, após ou durante a subtração do bem desde
que se dê em razão da violência aplicada para a subtração da coisa.

Seria latrocínio se a intenção de Barkins fosse subtrair as jóias da pobre Emily e da
violência empregada para levar os bens resultasse a morte dela. O que não parecer ter
sido o caso.

O fato é que não sabemos exatamente como ela morreu. Só sabemos que “tudo ficou
escuro, quando ela abriu os olhinhos, “tava” morta”. Existe, ainda, a possibilidade dele ter
a dopado ou golpeado na cabeça ( o que explicaria porque uma parte de seu rosto está
em um estado mais avançado de decomposição) para que desacordasse e subtraísse as
jóias. Considerando que ela sai diretamente da terra vestida de noiva, podemos supor
que ele a enterrou às pressas.

A conduta de induzi-la a um desmaio configura uma impossibilidade de resistência que
caracteriza o que chamamos de violência imprópria que configura o roubo próprio.

Quanto ao enterro do corpo de Emily há uma ambiguidade jurídica absurda: se ele
achava que ela estava morta não há crime- não existe omissão de cadáver putativo-, mas
se ele sabia que ela estava viva e a enterrou para que morresse por asfixia há crime de
homicídio e nesse caso haveria concurso material de crimes (dois crimes: roubo e
homicídio).

Quase no fim do filme, Lorde Barkins tenta dar o mesmo bote em Victória, sendo
surpreendido ao descobrir que ela estava mais pobre que ele, que não existia um dote a
receber, e pelos mortos invadindo a cidade e expondo a verdade sobre seu caráter.

Quase dois séculos se passaram desde a era vitoriana e as mulheres continuam sendo
vistas como um objeto dos homens, apesar de significativas mudanças recentes.

Continuamos a crescer ouvindo que precisamos ser boas o bastante para que alguém
queira se casar com a gente, como se isso fosse realmente uma necessidade para que a
vida fizesse sentido. (Sabe o que é uma necessidade pra mim? passar vergonha no metrô
de Nova York. Pegar 300 ônibus errados em Buenos Aires e errar dois pontos até chegar
na Plaza Itália. Pedalar pela Paulista segurando um copo do Starbucks. Ter uma ação
julgada procedente.). E por conta desse discurso, dentre outras coisas, é comum que
casemos com caras meia boca que, no máximo, se vestem bem, com sogras megeras,
suportando em silêncio algum tipo de agressão e fazendo de conta que é normal.

 

Sobre a autora: 

Ana Beatriz Rodrigues tem 24 anos e é advogada criminalista. Coordena comissões de diversidade de gênero e de direito militar da OAB Mirassol, além de ser membro da comissão da jovem advocacia. É pós-graduanda em direito público e em direito empresarial. Considera-se apaixonada pelo direito e pela advocacia desde que iniciou os estudos na área, aos 16 anos, pelo Centro Paula Souza.