ECA | O aborto da menina estuprada pelo tio

Artigo escrito por Ana Beatriz Rodrigues

O presente artigo merecia vir sem título porque eu não consigo acreditar que no século
XXI a gente ainda precise desenhar esse tipo de coisa pra marmanjo.

ECA pode significar várias coisas que vão do sentimento de repulsa até o Estatuto da
Criança e do Adolescente, mas aqui o significado é o primeiro mesmo.

Eu gosto de tirar o lado bom das coisas e o lado bom dessa situação é que rolou uma
revisão do título I da parte especial do Código Penal (CP) e do E.C.A (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Já é absurdo imaginar que um tio, que tem o dever de zelar pela integridade da criança,
tenha abusado de uma criança de 6 anos em continuidade delitiva por mais 4 anos.
É ainda mais absurdo que uma criança de 10 anos que tenha engravidado de um estupro precise de autorização judicial para poder abortar.

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal.

A doutrina majoritária, aqui estamos falando de grandes nomes do direito penal como
Guilherme Nucci, Fernando Capez e Mirabete – que não são, nem de longe, a sua vizinha
super religiosa que não perde uma missa aos domigos – admite o aborto sentimental em
casos de estupro de vulnerável. Na interpretação da regra legal é necessário ter em vista
que onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.

Eu não consigo entender essa necessidade que o brasileiro tem de dificultar as coisas. O
amor por burocratizar coisas simples é tamanho que às vezes eu acho que sou a única
que não morre de paixão em ficar 3 anos no telefone com a Judith para cancelar um
pacote da Vivo.

Teoricamente, para que ela conseguisse realizar o aborto, seria necessário apresentar um
Boletim de Ocorrência na unidade hospitalar, acompanhada por seu(s) responsável(is) legal(is). Mas pra que fazer isso se eu posso deixar uma criança esperando a vontade de agir com bom senso da galerinha togada?!

Qual a dificuldade prática de um médico realizar o procedimento e, caso eventual
processo, apresentar essa excludente de ilicitude?! Se fosse uma mulher adulta, até
diminuiria a indignação ante tamanha desumanidade – não basta ter sido estuprada, você
tem que fazer com que outras pessoas acreditem que você foi.

A infante tem 10 anos, se tivesse 14 poderia consentir com algum ato libidinoso. Mas com
10? É presunção absoluta de estupro. Nem deveriam ter perdido tempo discutindo
judicialmente. Sem contar que ela poderia ter morrido.

Muita gente parece não saber, mas apertem os cintos! Gravidez é maior causa de morte
entre adolescentes no mundo e isso se dá, (pasme, excelência! – entendedores
entenderão -) porque o corpo destas jovens não está preparado para passar por isso.

Muita gente, também, parece não saber que o Estado é laico. Isso significa que não
importa se você acredita em Nosso Senhor Jesus Cristo ou no Deus da Tribo da Polinésia
que honra à Hebe Camargo, sua religião e convicção filosófica contam para vários e
absolutos nadas nessa discussão. Quando for debater algum argumento jurídico ou lei,
pegue sua fé e deixe numa caixinha lá na sua casa. Vale a máxima: se não aprova, não
faça. Campanha pela vida? Principalmente se for pra cada um cuidar da sua.

Não dá pra comentar o caso sem lembrar daquele ser de luz fortemente vocacionado a
incidir em tipos penais que divulgou na internet o nome completo e o hospital onde a
garota estava.

A menor estava sob custódia do Estado. A primeira coisa que eu pergunto é: por que os
grandes cyber-magistrados não estão online para pressionar que se divulgue e puna
quem “vazou” esses dados sigilosos?!

Art. 17- E.C.A – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade
da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da
identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais.

O Brasil comporta, em média, seis internações diárias por aborto, em hospitais públicos e
clandestinos, envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem
estupradas.

Não vi nenhuma campanha radical, religiosa, fanática e quente pela exposição e punição
dos estupradores. Não vi ninguém se preocupando se ele haveria feito mais vítimas. Mas
vi pessoas julgando uma criança como se estivessem falando do episódio em que a
Quinn Fabray (Glee) resolve doar seu bebê para a adoção. Vi pessoas julgando famosos
que se propuseram a ajudar de alguma forma (ex. Winderson Nunes ofereceu custear
tratamento psicoterapeutico, Felipe Neto se comprometeu a bancar os estudos dela),
dizendo que só estavam fazendo para aparecer. Por algum motivo, ainda é mais
importante punir a mulher. Nascer mulher é uma dádiva, mas ao mesmo tempo é uma
sentença de morte.

Fontes:
https://oglobo.globo.com/sociedade/aborto/menina-de-10-anos-tem-gravidez-interrompida-passabem-24590524
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/06/gravidez-e-maior-causa-de-morte-entreadolescentes-no-mundo-diz-ong.html
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53807076

Sobre a autora:

Ana Beatriz Rodrigues tem 24 anos e é advogada criminalista. Coordena comissões de diversidade de gênero e de direito militar da OAB Mirassol, além de ser membro da comissão da jovem advocacia. É pós-graduanda em direito público e em direito empresarial. Considera-se apaixonada pelo direito e pela advocacia desde que iniciou os estudos na área, aos 16 anos, pelo Centro Paula Souza.