ESSE LENTÍSSIMO SINHÔ JUIZ DE TECLADO

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Artigo escrito por Ana Beatriz Rodrigues

A necessidade de justiça é algo inerente ao ser humano. O homem é um animal social e
como tal tem sede de justiça, mas o que é a justiça? Desde os tempos de Talião (olho por
olho, dente por dente) busca-se uma pena que faça jus ao prejuízo causado.

A pena tem, por sua natureza, dupla finalidade: prevenir crimes e vingança social. Nossos
instintos primitivos dizem que a pena deve ser proporcional ao que eu sinto que o outro
deva sentir para compensar algum dano.

Um dos motivos da existência do poder judiciário é a necessidade de apuração dos fatos,
averiguação da veracidade das acusações imputadas a alguém para a aplicação de uma
pena razoável e, de certa forma, previsível.

Para Focault, o homem é aquilo que faz quando ninguém está vendo. Oscar Wilde, por sua
vez, sustenta que “O homem é menos ele mesmo quando fala de sua pessoa. Mas deixe
que se esconda por trás de uma máscara, e então ele contará a verdade”.

O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, em 1785, criou um modelo de penitenciária
ideal onde um único vigilante poderia observar todos os prisioneiros sem que esses
soubessem.

Por mais distintas que sejam seus ofícios, esses pensadores encontram suas ideias na
premissa de que o ser humano só é bom quando vigiado.

Cada vez mais nossas vidas se assemelham a um reality show: câmeras por todos os
lados, todos os momentos compartilhados e assistidos por dezenas, centenas e, às
vezes, milhares de pessoas que, assim como nos realities, querem cancelar todos e tudo
que acham inadequado ou desnecessário.

E assim tem sido o nosso comportamento: tentamos mostrar ao máximo o quão “fados
sensatos” somos e a cobrar do outro uma perfeição ímpar para que seja digno de respirar
o mesmo ar que nós. Ninguém pode errar, ou ter um comportamento que sendo tirado de
contexto se torne o oposto do que era, para que os julgadores da internet prolatem sua
sentença sem ao menos certificar a autenticidade do que julgam. Baseado apenas no
discurso de ódio de todos os seus traumas de vida que não foram devidamente
canalizados numa boa terapia (nem que fosse a louça para lavar!).

Eles não são, em sua maioria, formados nem indicados politicamente a uma vaga que lhe
atribua jurisdição (poder de dizer o direito no caso concreto), mas julgam com uma
sabedoria ímpar, com a integridade e zelo que só o “direito penal do eu acho” poderia
permitir. Não tem direito penal do inimigo que se compare ao direito penal e constitucional
“do eu acho” fundamentado no capítulo escrito por Louro José.

Reis do Flagrante de 24 horas e da impunidade pela fiança. Não só sentenciam como
executam suas penas e lançam uma série de “cancelamentos” de pessoas. Alecrins
dourados. Alguns são apresentadores de televisão, digital influencers, e outros formam
opinião na fila da padaria porque se chegou no whatsapp e passou na tv é verdade. Se
estivéssemos na obra 1984, de George Orwell, certamente seriam os delatores do Grande Irmão.

Cada vez mais as nossas vidas se assemelham a um reality show: câmeras por todos os
lados, todos os momentos compartilhados e assistidos por dezenas, centenas e, às
vezes, milhares de pessoas que, assim como nos realities querem cancelar todos e tudo
que acham errado ou inadequado.

Quando alguém diz ou faz algo muito errado no BBB ou na Fazenda a represália consiste
em eliminar o participante, ou seja, ele é cancelado do programa. Na vida real o
cancelamento pode ter consequências maiores do que tirar alguém da tela.

Fabiane fora condenada, pela prática de bruxaria e sequestro. ao linchamento público.
Teve seus braços e pernas amarrados, fora chutada por todo o corpo por, no mínimo 5
pessoas. Arrastada pelo bairro, ainda com os membros amarrados, para ser chutada e
xingada por diversas pessoas. Seu corpo parecia um boneco de pano porque já
apresentava total incapacidade de resistência por tamanha violência. Quebraram uma ripa
de madeira em sua nuca, a arrastaram mais um pouco em via pública e teve sua cabeça
atropelada por uma bicicleta. Teve seu corpo jogado num córrego. Rosto inchado, nariz
quebrado, boca jorrando sangue tentando pronunciar algo ininteligível pela última vez em
sua vida.

Fabiane de Jesus, mãe de duas meninas, foi brutalmente espancada até a morte após boato na internet. Dezenas participaram do linchamento público. Quatro agressores identificados nas imagens foram condenados pela justiça

Alecio Ferreira Dias, condenado, por ter relação com suposto desaparecimento de uma
jovem, a execução à tiros, especificamente 7, por populares.

“Damiens fora condenado a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja
de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola,
carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na
praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços,
coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito
parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se
aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos
conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e
seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas
ao vento.”

As duas primeiras sentenças foram dadas, respectivamente, nos anos de 2014 e 2020
pelo tribunal da internet, já a última fora dada em 1757 e retirada da obra “Vigiar e Punir”
de Michael Foucault.

O cancelamento ou linchamento virtual é o insulto coletivo a alguém, muitas vezes por
boatos, que de alguma forma descontentou a massa. O problema é que esses insultos
repercutem no mundo real, como quando alguém é acusado de um crime grave, mesmo
sendo inocente, que o faz perder o emprego, ou contratos, ou a vida.

Não são raros os casos de suicídios após o “cancelamento” virtual ou de homicídios
originados por esses “cancelamentos” dados em sentenças da Suprema Corte Do
Teclado.

Houve um movimento escandaloso por conta do injusto assassinato de George Floyd, e
as mesmas pessoas que diziam lutar pelo fim da injustiça, da autotutela (fazer justiças
com as próprias mãos) e arbitrariedade policial são as primeiras que usam a hashtag
fulano cancelado.

Um caso recente foi o do youtuber PC Siqueira, com conhecido histórico de depressão,
que fora ameaçado de morte por esses nobres julgadores. Ninguém sabe quem vazou o
print e o áudio e nem se as imagens são verdadeiras, mas o crime a ele imputado
(pedofilia) é tão grave que existe a necessidade de primeiro punir e depois descobrir se
era ou não real.

Outro caso – que acontece no mundo todo, mas nunca aconteceu em Mirassol porque
aqui é onde se planta o mais puro Alecrim Dourado- são das inúmeras mulheres e garotas
que tem nudes vazados e são marcadas por toda a sociedade para sempre com adjetivos
de baixíssimo calão enquanto quem vaza quase nunca é identificado. Já quando o nude
vazado é de um homem (Oi, Tiago Iorc, tudo bem?!) é um Amei Te Ver. Palmas pra ele,
novo ícone dono da internet. Dois pesos, duas medidas, mas não porque a lei determina
(quero nem ver o tamanho do Inquérito do nude desse moço!), mas porque é como os
nobres julgadores sentem.

A internet traz facilidades como falsear vínculos e permitir que qualquer um emita opinião
sobre absolutamente tudo – o que faz dela uma fábrica de imbecis- e a forma mais fácil de
ter sua opinião aprovada é o bom e velho discurso de ódio, que diga-se de passagem
parece ser um bom passatempo (principalmente quando eu não preciso encarar nem lidar
com a dor do outro).

Por algum motivo, aposto na modernidade líquida, as pessoas têm se tornado mais
raivosas que animais treinados para rixas, mais frias que meu frapuccino, mais azedas
que sorvete de limão e mais frustradas que as irmãs da Cinderella.

Fontes: 

Mulher morta após boato em rede social é enterrada em Guarujá, SP

Após ser apontado como culpado durante “Cidade Alerta”, homem é morto 

Com depressão e transtorno bipolar, PC Siqueira desabafa: muito ruim viver assim

Sobre a autora: 

Ana Beatriz Rodrigues tem 24 anos e é advogada criminalista. Coordena comissões de diversidade de gênero e de direito militar da OAB Mirassol, além de ser membro da comissão da jovem advocacia. É pós-graduanda em direito público e em direito empresarial. Considera-se apaixonada pelo direito e pela advocacia desde que iniciou os estudos na área, aos 16 anos, pelo Centro Paula Souza.