O Espelho é para mim um dos contos mais intrigantes de Machado de Assis. Da obra Papéis Avulsos¹, o texto deixa evidente a grande habilidade do escritor em desenvolver tramas que levam o leitor a profundas reflexões filosóficas. Já no subtítulo – Esboço De Uma Nova Teoria Da Alma Humana – é antecipado o teor da narrativa, uma investigação metafísica sobre a natureza do que seria nossa essência. Para os que queiram ler o conto antes do spoiler que vem a seguir, sugiro clicar no link do final do texto antes de prosseguir.
No conto, Jacobina, personagem central que debate com outros quatro, revela aos seus interlocutores uma experiência estranha, descrevendo como descobriu algo sobre a identidade na sua relação com a sua farda de alferes, posto que ocupava na guarda nacional, e um espelho.
Quando tinha 25 anos, Jacobina foi desfrutar suas férias no sítio onde mora sua tia. Ocorre que todos se ausentaram da propriedade e Jacobina, depois de alguns dias mergulhado nas sombras da solidão, ao se olhar em um espelho, só consegue enxergar sua própria imagem refletida se trajado de sua farda. Sem ela, enxerga tudo, menos a si mesmo.
Estamos em tempo de férias, mas isso nem sempre garante a satisfação de gozá-las. Alguns, apesar de esperarem ansiosamente pela temporada, se sentem um tanto perdidos ao deixarem seus trabalhos. Outros, passando mais tempo juntos com a família, se desentendem.
O trabalho desempenha uma função de grande importância em nossas vidas. Nem sempre temos o privilégio de escolher esse ou aquele ofício, mas quando podemos optar, essa escolha tende a ser significativa. A profissão pode funcionar como solução encontrada para administrar as expectativas que lançaram sobre nós, além dos ideais que nós mesmos nos colocamos. Somos viciados em trabalho, mas o problema não para aí. Assim como Jacobina, despidos de nossas características profissionais, podemos nos sentir nus, esvaziados de identidade.
É ótimo descansar, abandonar as responsabilidades, poder ler, assistir séries, viajar e deixar se guiar pelo prazer. Mas como fazer tudo isso, descansar do si mesmo, sem a sensação que estamos virando nada, quando nossa vida é somente trabalho?
A argumentação de Machado de Assis pode ser assim colocada: só há consistência da identidade no desempenho do papel social. Fora da cena pública, a alma humana se torna vaga, uma interrogação. Ao narrar a fixação segura da farda como máscara social se desfazendo, Machado nos fala com percepção aguda sobre como o papel social acaba por absorver o homem.
Nas férias, sem a máscara social e com a mudança de rotina temporária, portanto de identidade, algumas pessoas podem sentir alguma dificuldade em desfrutar seu descanso, mesmo este sendo ansiosamente esperado. Mas é que em lugares diferentes, longe do olhar daqueles que nos conhecem e sem os papéis que estamos acostumados a exercer, podemos nos sentir estranhos a nós mesmos.
¹ Para ler o conto O Espelho e outros contos da obra Papéis Avulsos, de Machado de Assis, clique no link:
http://lelivros.love/book/download-papeis-avulsos-machado-de-assis-em-epub-mobi-e-pdf/