Pedro Malasartes, o Rei Triste e a Omelete de Amoras

Sobre a nossa relação com a falta...

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É comum nos contos de fadas que ouvíamos antigamente que o personagem triste, apático e desanimado, quase nunca era um pobre pai de família que precisava sustentar seus filhos. Esse, em geral, era uma pessoa inventiva, que criava soluções com os poucos recursos que tinha. Pedro Malasartes é um destes. O pobretão é personagem tradicional da cultura portuguesa e brasileira, mas segundo minha avó, ele era mineiro.

Entre tantos “causos” que ouvi sobre essa figura, num deles o astuto rapaz, que nada tinha além de seu caldeirãozinho, estava com fome sem ter o que comer. Ele botou água para ferver, acendeu uma fogueira por baixo e colocou lá dentro uma pedra. Todos que passavam perguntavam o que ele estava fazendo, e ele respondia: estou fazendo uma sopa de pedra deliciosa. Sopa de pedra? Perguntavam espantados. Sim, mas se você tiver uma cebola, fica melhor. E assim acontecia com todos que passavam. Curiosos para comer a sopa de pedra, acabavam trazendo alguma coisa: o sal, a cenoura, a batata, e no final todos comiam uma sopa nutritiva, inclusive Malasartes que até então não tinha o que comer.

Nos escritos de Walter Benjamin, o filósofo fala de um conto chamado Omelete de Amoras¹. É a história de um rei muito triste, que não se animava com nada. Apesar de seus súditos lhe trazerem presentes e de possuir muita riqueza, nada o tirava de seu estado de melancolia.

O rei um dia mandou chamar o cozinheiro da corte e disse a ele: olha, tem uma coisa que talvez possa me tirar dessa tristeza. Eu carrego uma lembrança da minha infância, de quando o reino foi invadido e meu pai e eu fugimos pela floresta escondidos. Escureceu, esfriou e nós estávamos perdidos naquela floresta escura, com fome, com frio e com muito medo. Depois de muitas horas andando, estávamos exaustos, mas vimos bem distante uma pequena luz. Pensamos que havia um fogo aceso, um lampião talvez e decidimos seguir naquela direção. Chegamos em uma pequena casa, onde uma senhora nos acolheu, nos deu roupas secas e nos serviu uma omelete de amoras. Quando eu coloquei o primeiro bocado na boca, algo divino aconteceu: eu me senti protegido, consolado e feliz. Eu e meu pai nos alimentamos e foi aquele prato a coisa mais maravilhosa que eu já provei. Lembro-me de ter ficado feliz.

Eu quero que você me faça essa omelete de amoras, continuou o rei. Se você conseguir, te darei muita riqueza, você pode me pedir o que quiser. Mas se o prato não ficar igual ao da minha infância, vou mandar que cortem a sua cabeça. O cozinheiro, que ouviu a história com atenção, pensou por um instante e respondeu: pois pode cortar minha cabeça imediatamente.

O rei se espantou e sem entender perguntou: mas você não sabe a receita? Não vai nem tentar? Eu sei exatamente a receita, começou a responder o cozinheiro. Sei a quantidade de amoras, sei como bater as claras do ovo, sei a quantidade de sal, de tomilho, de pimenta, sei o ponto das amoras. Sei todos os ingredientes e sei também o modo de preparar. Mas na minha receita não vai ter aquilo que te consolou naquela noite, que te deu prazer e aconchego. Porque na minha receita falta a floresta escura, o frio, o medo e o desamparo que você sentia. Falta também a fome enorme que vocês experimentaram, assim como a felicidade de ser acolhido em uma casa pequena por uma pessoa bondosa. O que te falta para ser feliz, é a própria falta.

Desejar é um jogo interminável entre a satisfação e a incompletude. Um rei sempre saciado não consegue desejar nem se satisfazer, mesmo tendo a receita da felicidade de sua infância. Já o pobre Malasartes, apesar da privação, consegue dar um destino criativo à sua fome.

A incompletude é o que nos move, a falta é condição do trabalho psíquico. As dificuldades que enfrentamos na vida, sejam elas grandes ou pequenas, estão na origem do que temos de mais interessante. Elas nos obrigam a nos inventarmos para além de nós mesmos, para além do óbvio.

¹ Conto da Omelete de Amoras extraído da fala de Maria Rita Kehl na UFBA.