Mirassol Conectada

Trabalhador da UPA de Mirassol faz desabafo

Completou um ano o início da pandemia que está fazendo o Brasil passar pela maior crise sanitária e hospitalar da história, de acordo com a Fiocruz. O novo coronavírus, que já causou a morte de 292.856 brasileiros, tirou de suas famílias 101 pessoas em Mirassol. O médico e neurocientista Miguel Nicolelis afirma que até a metade do ano nosso país pode chegar a 500 mil vidas perdidas para a COVID-19.

Enquanto a cidade bate recorde no número de novos infectados, apenas nesta semana foram confirmados 397 novos casos da doença em Mirassol, profissionais da saúde arriscam-se na linha de frente em meio a um sistema colapsado. Mas o que tem acontecido com quem cuida da gente? Conversamos com o técnico em enfermagem, Rubens Origa, que trabalha na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Mirassol desde 2016. De acordo com ele, atualmente há 13 pacientes no quarto de observação e 4 na sala de emergência, sendo 2 intubados, totalizando 17 pacientes no espaço improvisado (contando os pacientes que aguardam a confirmação do exame, até a noite de 20 de março). Confira a conversa completa com o trabalhador:

MC: A sua rotina de trabalho mudou com a COVID-19? Como é hoje?

Rubens: A COVID-19 mudou a nossa rotina de trabalho totalmente, tanto para os profissionais da saúde como para a população de uma forma geral. As famílias precisaram mudar muitos hábitos por causa dessa nova doença. Eu, particularmente, nunca imaginei que a UPA de Mirassol fosse chegar a esse ponto. Sabia, sim, que a doença chegaria a Mirassol, a São José do Rio Preto, mas não nessa proporção.

O medo é o que mais causa dor na gente. Meu maior medo hoje é ir trabalhar e trazer alguma coisa para dentro de casa na volta, é terrível me imaginar prejudicando meus familiares: minha filha, meu esposo, a minha mãe, o meu pai…hoje o coronavírus não está só nas pessoas mais velhas também há crianças contraindo o vírus e morrendo. O que mais me afeta é esse medo de causar mal a algum familiar.

MC: Já perdeu algum paciente por falta de leito? Qual é a situação da UPA hoje?

Rubens: Eu trabalho todas as noites, em Mirassol e em Jaci, e diariamente estamos perdendo pacientes por falta de leito via CROSS (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde). Eu sei que hoje (20 de março) há 13 pacientes no quarto de observação e 4 na sala de emergência, sendo 2 intubados, totalizando 17 pacientes na UPA de Mirassol. Tá muito mais difícil porque a nossa maior referência, né – a gente mandava muito paciente para o Hospital de Base de São José do Rio Preto – já está superlotada. Então agora é tudo via CROSS então realmente já perdemos pacientes por falta de vaga e é muito triste, é uma coisa que a gente sai de lá, assim…eu saio de lá chorando. Na hora a gente não se dá conta direito do que está acontecendo porque você tá naquele piloto automático, né? Mas quando a gente chega em casa para e pensa: Nossa, a UPA tá lotada e se chegasse a minha mãe não teria vaga para a minha mãe. É quando a ficha começa a cair, sabe? A situação na UPA (no plantão retrasado) é essa: lotada com pacientes no quarto de observação e na pediatria, ou seja, a área virou uma enfermaria e a emergência da UPA virou uma UTI improvisada!

A UPA está sobrecarregada ao máximo, a gente não tem aparelhagem para esses pacientes, temos 5 respiradores porém 2 estão quebrados (nosso chefe solicitou o conserto) portanto hoje temos só 3 funcionando. Monitores, não temos monitores para todos. Quando a gente fala que vai intubar um paciente é muito triste porque eu vejo como se fosse alguém da minha família e eu sei que não posso fazer muita coisa porque todos os monitores e respiradores estão ocupados. Eu sinto uma sensação de impotência, como se eu não conseguisse reagir e não pudesse fazer nada. Me abala muito essa sensação de não poder fazer nada e a cada dia perder mais pacientes. Todo dia a gente perde um, perde dois, perde três… Plantão retrasado a gente não tinha onde colocar paciente deitado, precisamos pegar as macas que ficam nos consultórios, que não são próprias para aquilo, sabe?

É muito difícil, a gente não sabe mais em que lugar colocar paciente que vem a óbito, a gente coloca no final do corredor, sabe? é muito triste, é muito triste ver essa cena, eu falo que quando isso acabar certamente vou precisar de atendimento psicológico, tudo isso está me abalando profundamente.

MC: Ainda há muita gente duvidando da doença e dizendo até que “é só uma gripezinha”. O que você acha disso?

Rubens: É a pior parte que eu tenho a falar, muita gente está duvidando, tem gente nas minhas redes sociais que até diz que é mentira, que não tem ninguém aguardando vaga de internação na UPA, é um absurdo. Parte da população também não está nem aí. Mas gente, isso não é só uma gripezinha. Isso é uma coisa séria, gente, que te tira o seu ente querido, leva embora mesmo e você não pode nem velar o seu ente querido, entendeu?! É uma coisa muito séria e triste. O povo não colocou na cabeça que isso leva embora a pessoa que você mais ama!

Por trás de tudo existe muita politicagem e em vez de o pessoal parar e olhar para si mesmo, olhar para a saúde, não só a minha saúde mas também a saúde dos meus familiares, a pessoa primeiro quer ver questão política? “ah, eu vou defender fulano, eu vou defender ciclano, ah, fulano falou que é só uma gripezinha, então é só uma gripezinha” e não é só uma gripezinha, eu acho um absurdo isso. Esse colapso na UPA, não só na UPA, mas em outras cidades como em Bady Bassit, em São José do Rio Preto, não tem mais lugar para colocar paciente, gente! Então não é só uma gripezinha, a coisa é bem mais séria do que a gente imagina.

Rubens é técnico de enfermagem da UPA de Mirassol desde 2016 (foto: arquivo pessoal)

MC: Muitos trabalhadores da saúde estão apresentando quadros depressivos e relatando esgotamento físico. Qual é o seu sentimento como profissional da área?

Rubens: Eu me sinto sem forças para nada, eu me sinto uma pessoa fraca. Impotente principalmente porque na hora em que eles (pacientes) pedem oxigênio pra gente, a gente não consegue mais fazer nada porque não tem mais pontos para colocar os cilindros de oxigênio…monitor a gente também não tem mais para atender a todos, sabe? Isso abala muito a gente. Estamos esgotados, mentalmente a gente tá um caco. Quando acabar tudo isso, como eu já disse, não só eu mas todos os profissionais de saúde provavelmente vão precisar de ajuda psicológica para lidar com tudo.

São pessoas e pessoas que morrem todos os dias na nossa frente, nas nossas mãos, e a gente não pode fazer nada por falta de vaga, então é uma cena horrível. Antigamente, a gente se preocupava com os idosos, agora, tem também gente de 30 anos sendo intubada, gente jovem, gente nova que acaba não revertendo após o processo. A gente acaba perdendo a pessoa realmente por falta de vaga. (suspiro). Então é muito triste, eu me sinto muito mal. Chego em casa e todo dia eu choro para o meu companheiro, eu tenho muito medo também de acontecer alguma coisa e não ter leito nem pra mim, nem pra ele e nem para a nossa filha. Isso me abala muito. Não só para o pessoal de casa, mas também para a minha avó, para minha mãe, para o meu avô que é obeso e teve um AVC ano passado, portanto de alto risco por ter comorbidades, então assim, eu tenho muito medo disso chegar a acontecer. Isso abala não só a minha cabeça mas todos os profissionais da área da saúde, como o pessoal da farmácia, limpeza, recepção, técnicos e auxiliares de enfermagem, enfermeiras, os médicos…. Toda vez que a gente pega ou passa um plantão é sempre tudo voando, não dá tempo para nada porque é um cenário de terror, de guerra. Quando a gente vê 3, 4 pacientes intubados em uma sala que não foi feita para isso… 14, 13 pessoas em um quarto de observação sabe? Com máscara de alta concentração no O2…então é muito triste, é uma cena muito triste.

MC: Você teme que a sua família se contamine? Já foi contaminado?

Rubens: Sim, eu fui contaminado em junho do ano passado, no começo da pandemia. Fiquei afastado em casa cumprindo o isolamento por 14 dias. Hoje, neste dia, eu tenho muito medo que a minha família se contamine e que precise de leito porque não tem vaga. Então o que passa na minha cabeça? Se a minha mãe, uma avó minha, meu avô, meu pai, se a minha filha precisar de um leito, eu sei que não vai ter então aciona o meu maior medo, das pessoas mais próximas a mim não terem acesso a uma internação. Não tem um leito de UTI porque não tem vaga por irresponsabilidades anteriores. Festinhas, chácaras… meu maior medo é perder as pessoas que eu amo. Esse é o meu maior medo.

 MC: O que você diria para as pessoas que minimizam o coronavírus?

Rubens: Eu pediria hoje para as pessoas levarem a sério a COVID-19 como qualquer outra doença perigosa e que tomassem as medidas protetivas. Gostaria muito que as pessoas se conscientizassem e adotassem comportamentos positivos para proteger não só a elas mas também os seus entes queridos, nossas maiores joias.

O isolamento social é a maior grande arma que temos hoje para combater a transmissão do coronavírus. Insistiria para que não deixem de adotar as medidas protetivas, que tomem os cuidados necessários como se fosse qualquer outra doença importante. É uma coisa muito séria, não é só uma gripezinha. Faça o isolamento social, fique em casa, eu sei que é difícil, não é fácil ficar em casa, mas é a única arma que a gente tem hoje. HOJE é a única arma contra a doença.

Gostaria que a população, principalmente essa parte que não acredita, que entendesse que eu, técnico em enfermagem, eu arrisco a minha vida todos os dias, sabe? Para salvar também a vida dessas pessoas que não acreditam na COVID-19. Eu deixo a minha família em casa, trabalho à noite todos os dias, moro mais dentro de hospital do que dentro da minha própria casa para salvar vidas de pessoas que eu nem conheço e tem gente que não leva a sério, então eu gostaria muito que o pessoal levasse isso a sério, que desse valor a nossa profissão e as nossas vidas. A partir do momento que eu fiz o curso para técnico em enfermagem foi para cuidar e eu vou cuidar até o fim por mais difícil que seja.

É muito triste, ainda mais esse pessoal que não acredita, a gente vê esses comentários no Facebook, nas redes sociais, e enfraquecem ainda mais a gente. É triste ver isso porque eu tenho a total insegurança de não saber hoje se vamos viver ou morrer por falta de vagas na UTI. Hoje eu tenho essa total insegurança mas por mais que estejamos ali para socorrer, para ajudar, para salvar vidas, eu tenho hoje essa total insegurança.

A vontade que eu mais tenho hoje é de poder tirar a máscara em segurança e dar um sorriso para os pacientes. Eu não vejo a hora de todo mundo ter acesso a vacina e de tudo isso passar…

*

Leia também a carta enviada pelos médicos da UPA de Mirassol ao vereador Professor Júlio Salomão:

Sair da versão mobile