Violência doméstica e COVID-19

Por Ana Beatriz Rodrigues 

 

“Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante pandemia”

“Paim alerta para aumento da violência contra mulheres durante pandemia”

“Pandemia aumenta violência doméstica, mas diminui notificação”

“Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19”

Quando falamos de violência doméstica a primeira coisa que vem em mente é a física, mas é importante ressaltar que existem outros tipos: a psicológica, sexual, patrimonial e moral.

A cada 2.6 segundos, uma mulher é vítima DE OFENSA VERBAL*.

Cada vez mais o assunto é explorado pelas mídias e até pelo judiciário. Para se ter noção da relevância jurídica do tema, O Superior Tribunal de Justiça (STJ) divulgou na edição nº 111 de Jurisprudência em Teses, com o tema Provas no Processo Penal – II, em 2018, entendimento sobre relevância da palavra da vítima de violência doméstica ou sexual que comportava em seu bojo dois entendimentos muito relevantes sobre o tema:

“Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos.”

“Nos delitos praticados em ambiente doméstico e familiar, geralmente praticados à clandestinidade, sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios acostados aos autos.” Além disso, o STF, por unanimidade, decidiu a proibição de aplicação das medidas despenalizadoras da lei 9099/95 em casos de violência doméstica.

Dei início ao presente artigo com algumas manchetes de jornais, assembleia legislativa, e até do Senado e alguma jurisprudência para anunciar o assunto da semana: a cifra negra da violência doméstica.

Na criminologia existe a vitimologia, que é o estuda da vítima sob o enfoque estatístico com o fim de aperfeiçoar(?) a segurança pública buscando dados reais sobre a criminalidade.

A vitimologia traz cinco espécies de vitimização: a primária, secundária, terciária, indireta e heterovitimização (aqui cabe um artigo só para explicar e exemplificar cada uma). O que interessa aqui é a vitimização secundária e terciária porque elas dão origem ao que denominamos “cifra negra”.

A cada 7.2 segundos, uma mulher é vítima DE VIOLÊNCIA FÍSICA.*

Cifra negra e o conjunto de crimes que na ́ ̃o chegam ao conhecimento do Estado para registro por razões subjetivas. A vitimização secundária é o sofrimento adicional que os órgãos públicos (polícia, ministério público, judiciário) e a persecução penal impõe, além da imprensa e sociedade. É a exposição do corpo de delito, os frequentes interrogatórios pelas autoridades que exigem sempre mais e mais detalhes. A terciária, por sua vez, é o processo de segregação social e familiar que a vítima de crimes sofre, causando vergonha e humilhação.

Outro conceito que é importante tornar público, até por conta da confusão com o seu parônimo (grafias similares, mas significados diferentes), é o feminicídio. Esse é o homicídio cometido em razão do gênero da vítima- o sujeito mata porque a vítima é mulher- ao passo que o femicídio é quando a vítima do homicídio é mulher, mas não tem relação com o gênero- mata uma mulher, mas não por ser mulher-.

Mas se a lei traz tanta proteção o que faz com que as mulheres ainda se sujeitem a esses tipos de abuso?

A cada 6.3 segundos, uma mulher é vítima DE AMEAÇA DE VIOLÊNCIA.*

São inúmeros os motivos que fazem uma mulher se submeter a esse tipo de relacionamento: dependência econômica, falta de acolhimento sociofamiliar, medo, desconhecimento da situação em que se encontram.

Quando fazia estágio no Ministério Público não conseguia entender porque mulheres, principalmente as mais jovens, se relacionavam com abusadores que chamamos vulgarmente de “chernoboys” ou “boy lixo”.

São homens comuns, queridos pelos amigos, de “boa família” (entre aspas porque muitas vezes apenas reproduzem hábitos do meio em que viveram ou agem em decorrência da criação que tiveram). Alguns fizeram “Anglos” da vida, se formaram em federal e trabalham em multinacionais, Outros são “Zé da Silva, pedreiro formado pela “escola da vida”.

Levei muito tempo pra conseguir entender que nenhum relacionamento abusivo começa assim, o que facilita a manipulação por parte do agressor e dificulta a busca de ajuda pela vítima. Após conhecer alguns casos, percebi um padrão bem comum:

No começo, muitos deles parecem, para suas vítimas, tão perfeitos a ponto de parecer que AnaVitória escreveu “Dengo” ou “tu(trevo)” em sua homenagem, que Nando Reis compôs “Allstar azul” prevendo que em algum momento aquele cara apareceria, que Jorge e Matheus gravou um “ao vivo” pra ser escutado enquanto ela se arruma pra vê-lo. Se mostram parceiros, incentivadores, apaixonados, apaixonantes, doces, gentis. Alguns tem ex tão loucas quando a Taylor Swift em “blank space”, outros não deram certo porque “estava desgastado” (tá aí uma coisa que a gente precisa aprender: a investigar o que seria esse “desgaste”).

Um dia você percebe que começou a ver menos seus amigos, a estar mais envolvida com as coisas dele, mas tudo bem, faz parte né?! Não dá pra ter uma vida a dois se tudo for voltado só pras coisas e pessoas do seu lado.

Um dia ele bebe demais e fala alto com você, aponta o dedo na sua cara. Talvez nesse dia ele ainda não te bata, mas a culpa não é dele, ele estava fora de si. Um dia você quer ir embora mais cedo, pega as chaves do carro e ele puxa teu braço dizendo que você não vai. Um dia ele tropeça em algo e te dá um soco, por reflexo, você sabe que ele nunca faria nada pra te machucar, porque ele te ama tanto que não quer que você fique de conversinha com outros caras porque eles podem te desrespeitar por isso. Um dia ele te bate e te pede desculpas porque bebeu demais e perdeu o controle, ou porque você fez ou disse algo que mereceu.

A cada 6.9 segundos, uma mulher é vítima DE PERSEGUIÇÃO.*

Um dia você está no carro sozinha com ele e mal vê a hora de sair dali, qualquer movimento dele é suspeito e ameaçador e você nem sabe o porque se sente assim já que ele continua sendo bom pra você.Por algum motivo você só quer se trancar no banheiro e chorar. Ele ainda lembra as datas, ele ainda faz aquele prato que você gosta, aquela massagem no banho, boas surpresas.

Sua família adora ele, seus amigos então, nem se fale! Você acredita que vai passar o resto da vida com aquele homem e que todas aquelas coisas são defeitos toleráveis, afinal, ninguém é perfeito e “O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Muitas de nós crescemos levando Coríntios 13:4-7 como a máxima do amor romântico marital.

Quando Ed Sheeran fala que “loving can hurt sometimes (…)”(br: as vezes o amor machuca) ele não se referia a dor física ou danos psicológicos. Era só uma figura de linguagem.

A cada 2 minutos, uma mulher é vítima DE ARMA DE FOGO.*

Se ele tem uma carreira, é perigoso comentar com alguém porque talvez você esteja imaginando coisas e destrua a vida de um homem integro e bondoso. Talvez você abra mão da sua pra ajudar ela a crescer na dele. É perigoso procurar ajuda policial e ser desacreditada por ser mulher, por não ter marcas pelo corpo- que inclusive ele faz o que e quando quer porque é teu namorado/marido/noivo e faz parte do pacote-. Havendo marcas, ele pode dizer que você se machucou sozinha porque é louca. Se você revidar alguma agressão ele consegue virar o jogo para parecer que você é descompensada e tende a ligar chorando para familiares dizendo que “não sei o que aconteceu com ela, começou a surtar do nada”.

A cada 16.6 segundos, uma mulher é vítima DE AMEAÇA COM FACA OU ARMA DE FOGO.*

Quando alguém vê um roxo na sua perna você começa a dizer que bateu em algum móvel. Ainda que alguém desconfie, ninguém faz nada porque “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Se você cogita sobre largar logo escuta que “é uma fase, quando casar melhora” e “vai querer ficar pra tia?” “você é muito dramática”. São frases como essas e tantas outras que fazem com que mulheres romantizem seus abusadores, não se deem conta do tipo de relacionamento que estão inseridas ou simplesmente ignoram o que estão passando.

Por outro lado, existem aqueles que te convencem que você não vai conseguir nada sem um cara como ele ao seu lado, que deveria agradecer por ele te amar tanto. Que o que é dele é dele, mas o que é seu é de vocês.

Por fim, voltamos a AnaVitória, mas com “barquinho de papel” ou o blasé batidinho “somebody that i used to know” de Gotye. Terminar não costuma ser fácil, costuma envolver variadas ameaças, ou ele te faz sentir culpada a ponto de acreditar que você está louca e querer voltar pra ele pedindo mil perdões, ele desestabiliza teu emocional de uma forma que você não consegue nem comer direito sem a aprovação dele. Parece que uma parte de você se foi e você vai sentir falta daquilo pra sempre. É de praxe que a mulher se sinta sozinha ainda que o fim tenha sido por interferência de terceiros.

Durante a quarentena, por conta do isolamento o casal tende a passar mais tempo juntos, que intensifica as agressões e dificulta uma brecha para a denúncia, que, por decorrência lógica, aumenta a cifra negra. Cientes que discar 180 pode ser uma missão impossível, exitem aplicativos, como o app de venda Magalu, possuem uma função oculta de denúncia, existem assistentes virtuais como o whatsapp (11) 94494-2415, e grupos no facebook para ajudar mulheres em situação de violência doméstica.

Se você se identificou com alguma parte desse texto que veio após “um padrão bem comum:” procure ajuda, existe uma imensa possibilidade de você estar num relacionamento abusivo e não ter percebido antes e a culpa não e sua.

A cada 22.5 segundos, uma mulher é vítima DE ESPANCAMENTO OU TENTATIVA DE ESTRANGULAMENTO.*

*=dados da página relógios de violência.

Fontes:

Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19
Pandemia aumenta violência doméstica, mas diminui notificação
Paim alerta para aumento da violência contra mulheres durante pandemia
Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante pandemia

Sobre a autora:

 

Ana Beatriz Rodrigues tem 24 anos e é advogada criminalista. Coordena comissões de diversidade de gênero e de direito militar da OAB Mirassol, além de ser membro da comissão da jovem advocacia. É pós-graduanda em direito público e em direito empresarial. Considera-se apaixonada pelo direito e pela advocacia desde que iniciou os estudos na área, aos 16 anos, pelo Centro Paula Souza.