Pensar no episódio de intolerância que entrou em cena na Queermuseu, uma mostra de arte que abordava questões de gênero e diversidade, não é tarefa simples. Mas com a ajuda da invenção freudiana e da criatividade de Almodóvar, podemos arriscar alguma compreensão sobre o fato.
Assistir aos filmes do cineasta é garantia de terminar em estado de inquietude. O olhar do diretor nos conduz por uma vertente persuasiva que provoca incômodo, pois parte de situações que sentimos inicialmente como absurdas e inaceitáveis, mas que vão se deslocando do ponto inicial, parecendo depois um pouco mais viáveis. É como se o bizarro da cena, ao se materializar na tela bem diante de nós, nos fosse de alguma forma familiar.
O que Almodóvar faz é revelar que aquilo que consideramos diferente e estranho é insuportavelmente nosso. O estranho não está apenas no outro, mas é de uma maneira peculiar, parte do nosso psiquismo também. Por isso nos provoca, ao tomar corpo e dar forma ao “não-dito”, a conteúdos que foram silenciados há muito tempo.
No campo da arte, a Psicanálise ofereceu grande contribuição, uma vez que aquilo que é posto em jogo em uma análise o é também na produção artística: a relação do desejo com a castração. O marco de fundação da psicanálise se dá justamente na publicação de A Interpretação Dos Sonhos, obra em que Freud elucida os mecanismos de formação onírica, mostrando que estes funcionam tal qual na arte: a tela, assim como uma cena onírica, representa um objeto ou uma situação ausente que, censurados, só se permitem ver de forma deslocada, por meio de seus representantes simbólicos.
O que isso tudo pode falar do episódio de censura da Queermuseu? Os que defenderam o fechamento da mostra alegaram que ela seria pornográfica e faria apologia à zoofilia e pedofilia, sendo ofensivo principalmente às crianças. Não acredito que o problema seja esse. Se de fato fosse, por que a indústria pornográfica não causa tamanho alvoroço, já que temos disponível na internet infinidades de categorias e modalidades de sexo, acessíveis com um simples “clique”?
Não é de bom senso afirmar que na mostra houve apologia a práticas sexuais, posto que a arte não nos fala da coisa em si. Pelo contrário, a expressão artística é sempre incompleta, já que são os expectadores que, ao apreciar a obra, tem seus conteúdos internos perturbados, gerando assim um novo sentido que não está na obra, mas também não está em quem a presencia: se dá na interseção entre os dois.
Por isso desconfio que o discurso moralista foi apenas a roupagem para aquilo que estava latente. É que a mostra foi sentida como uma afronta ao nosso velho sistema de excluídos e incluídos, dominadores e dominados, não só pelo que arte provoca e por sua capacidade de movimentar conceitos e valores, mas por outros fatores bem mais explícitos: o fato de ser uma mostra LGBT, com claro posicionamento inclusivo e favorável à diversidade; e o fato da mostra ser patrocinada por um banco, instituição que cumpre tradicionalmente função conservadora, mas que ao apoiar a mostra se desvia de seu lugar, e assim é solicitado a retomar seu posto.
Se aquilo que escapa à lei e à ordem, representado na arte, não é só do outro, mas assim como nas cenas dos filmes de Almodóvar é estranhamente meu também, pois me toca, estou conectado não só com a obra, mas com todos aqueles a quem considerávamos inferiores. Isso elimina uma diferença que nos permitia classifica-los como degradados, condição para exercer poder sobre eles. Mas se a arte me diz que essas condutas não me são tão estranhas (foram apenas recalcadas), em meu íntimo não sou tão diferente.
A necessidade de censurar a mostra pode ser entendida então, por esta perspectiva, como uma resposta emocional que foi instrumentalizada pelos conservadores a fim de uma defesa contra o que sentem como ameaçador, ou seja, a possibilidade de anulação daquilo que é colocado como diferença, fundamental para manter a operação classificatória. Sem a classificação normativa, a dominação sobre o outro perde a legitimidade. A censura acaba então sendo não apenas um movimento defensivo, mas de retomada do lugar de poder anterior, agora ainda mais forte em virtude do estardalhaço alcançado.
Na pornografia, a quebra dos tabus não provoca reação, é aceita, pois enquanto a arte – especialmente com a temática inclusiva da mostra – ameaça uma estrutura de poder e dominação, a pornografia faz o contrário. Nesta, ao aproximar o sexo da violência, dado que em sua forma de expressão alguém sempre exerce um poder sobre o outro – normalmente o homem sobre a mulher – ela garante a repetição da relação de poder. No filme pornô, um sempre tem o que outro quer e o comportamento se dá de modo mecânico e previsível.
A afronta que levou ao encerramento da exposição não está nas imagens de sexo, nem na quebra do tabu em si, como foi justificado, mas na capacidade que a arte tem de deixar emergir os nossos silêncios, de revelar algo sobre nós, rasgando o véu da representação sob o qual se ocultam as verdadeiras relações perversas (de classificação e dominação) que, se forem apreendidas pela razão, podem ser dissipadas.