Cresci como a maioria das crianças do interior que todas as tardes se juntava na rua ou na casa de alguém para jogar bola ou armar alguma brincadeira. Numa destas, encontrei em minha casa uma lata já aberta de tinta prateada. Achava o prateado uma cor excepcionalmente bonita e comecei a pensar o que poderei fazer com aquilo. Reuni a turma toda e com ripas de um caixote de madeira, construímos uma espada para cada um. Cortamos, lixamos e pintamos todas elas, certos de que, pela cor reluzente do artefato, enganaríamos a todos os que nos olhassem, fazendo-os crer que se tratava de uma autêntica espada de combate.
O que faríamos com os novos brinquedos? Alguém deu a sugestão: vamos caçar um gato. É isso. Saímos todos à procura de um gato de rua. Eu, no entanto, sabotava a brincadeira, quando via um gato qualquer, dirigia o grupo para o lado oposto. Embora não tivesse nenhum membro felino ou canino na minha família, dedicava um amor por esses animais e os alimentava com leite ou sobras de comida sempre que iam visitar meu quintal.
Mas não teve jeito, ao virarmos a esquina, dei de cara com um pequenino. Todos estavam à minha volta, não havia escapatória. Apontei a espada pontiaguda para o bichano, que apenas se deitou de barriga para cima, me olhando com confiança. O felino era um velho conhecido, eu já o havia alimentado e acariciado muitas vezes. O grupo ficou todo em silêncio, me olhando com tensão e expectativa. Você não vai matar? Perguntou um deles. Senti-me muito mal, a ideia de fazer as espadas tinha sido minha. Os animais estariam protegidos se não tivesse pensado nisso. Mas tomei coragem: não vamos matar nenhum gato, é só uma brincadeira, vamos atrás de outro agora! Nesse momento me senti aliviado e senti um alívio em todos eles também. Corremos todos para outro lado, e pude alimentar meu amigo rajado muitas vezes depois.
Nessa época, aqui no interior, alguns “pecados” eram tratados como imperdoáveis. Um cão que mordesse alguém, por exemplo, certamente seria sacrificado. Se não pelo seu dono, acabaria sendo envenenado por alguém. Simplesmente era assim. Os ditos populares tinham de ser cumpridos, desde o “cão que come a caça, só matando”, até o “homem que é homem não chora”.
Naquela situação junto com os amigos, não ferir o gato poderia ser entendido como um gesto de covardia. A aceitação pelo grupo era importante, cabia provar masculinidade. Felizmente meu mal estar era compartilhado pelos outros meninos.
Mais tarde, na adolescência, meu pai comprou uma espingarda de pressão. Nos finais de semana, íamos atirar no sítio de meu tio. Eu usava latas de cerveja como alvo, mas meu pai um dia mirou em um pássaro, que estava num galho muito alto de uma árvore. Atirou várias vezes e mesmo assim o pássaro nem se movia. Parecia que o projétil de chumbo não chegava com força suficiente para ferir o pequeno voador, quando depois de alguns disparos, ele finalmente caiu. Todos os projéteis, não me lembro quantos, estavam alojados em seu pequeno corpo, e mesmo assim o pássaro ainda respirava. Aquilo me deixou profundamente entristecido, mas não me pronunciava. O silêncio me torturava, mas precisava mostrar que era homem.
Felizmente, meu pai pegou o pequeno pássaro do chão e expressou o que eu estava contendo com muito esforço. Ele se mostrou muito arrependido. Acho que só não chorou porque naquele tempo, homem ainda não chorava. Tinha se dado conta da estupidez do gesto e repetiu várias vezes que nunca mais faria isso. Apesar da tristeza que me envolvia pelo pássaro, passei a sentir um orgulho do meu pai e um alívio em ver que ele não era diferente de mim.
Sabemos do laborioso caminho das mulheres em busca de liberdade, elas lutam contra o peso de milênios de opressão. A desigualdade ainda é grande, mas no rastro dessas batalhas, a condição do masculino também teve suas estruturas alteradas.
É verdade que para crescer sempre cometemos algum movimento de assassinar a nossa própria infância e os rituais de passagem continuam de outras formas, mas não temos mais que provar que somos aptos a ser homem pela insensibilidade.
Ainda somos desafiados a demonstrar que nos tornamos homens ou mulheres suficientes, mas no fundo, o lugar do feminino e do masculino é sempre incerto. Graças às feministas e suas conquistas, o lugar que a feminilidade pode ocupar hoje é muito maior que há tempos atrás. Consequente, o feminino é ainda mais indefinido. Os homens, por sua vez, queixam-se de se perderem das certezas e garantias que por milênios sustentavam a sua virilidade.
Não deviam reclamar, pelo contrário, graças ao feminismo não precisamos mais passar pela tristeza de ter de esconder o choro, de não poder falar de sentimentos ou de ter de esconder o amor que sentimos pelos animais.