Psicologia & Sociedade: Deixando a vida pra depois

Você também tem a sensação de que o ano só começa pra valer depois do carnaval? O período da festa pode mudar, às vezes até adentra o mês de março, mas quase sempre coincide com recessos e férias escolares. Aí a impressão que fica é que janeiro e fevereiro são meses inaproveitáveis. Essa complicação acaba atrapalhando prazos, tarefas e negócios. A desculpa perfeita para nossa mente procrastinadora, sempre pronta para adiar tudo o que é inadiável.

Procrastinação, essa palavra rebuscada, significada adiar, postergar, evitar a realização de uma tarefa. O resultado, quase sempre, é um desconforto psicológico e emoções negativas, como a culpa e a insatisfação. Imagine, por exemplo, que você tenha uma tia muito próxima, idosa, internada e gravemente doente. Você sabe que deve ir ao hospital, diz que amanhã sem falta irá. Mas não vai, porque tem muita coisa pra resolver. Mas no lugar de resolver seus problemas, a cada coisa que tenta fazer pensa que deveria ter ido visitar a tia, e assim, não consegue se concentrar para finalizar nada.

A cena acima pode ser transportada para todas as pendências às quais nos apegamos. Há tantas tarefas acumuladas, deixadas de lado, que acabam ocupando todo o espaço psíquico, de forma que fica muito difícil fazer alguma coisa. Aí, pensamentos obsessivos acabam por se tornar vício. Ao ficarmos pensando compulsivamente naquilo que estamos em falta, nos distraímos do que é essencial, obcecados por tarefas que só atingiram uma dimensão relevante porque não foram finalizadas.

Do ponto de vista evolucionista, a procrastinação é um produto indireto da impulsividade de nossos ancestrais. O ambiente hostil e o futuro incerto dos homens primitivos selecionou, através do tempo, aqueles que buscavam recompensas imediatas, pois se organizar e planejar o tempo futuro não fazia muito sentido: o que importava, naquele ambiente primitivo, era sobreviver mais um dia. Ter metas e objetivos são coisas do mundo moderno. Mas colocar a culpa na seleção natural também é uma boa desculpa para continuar procrastinando, não é?

Da ótica da psicanálise, por sua vez, podemos olhar o assunto por outro ângulo. A partir da invenção freudiana, começamos a compreender a ambivalência de alguns fenômenos humanos, e apesar de parecer um tanto estranho, um comportamento que resulta em um sofrimento evidente pode estar atravessado também por algum tipo de satisfação. Assim, cultivar uma culpa por não ter ido visitar alguém, ou não ter feito uma obrigação qualquer é bem conveniente. Acaba sendo mais cômodo, pois, se já estamos condenados a fracassar, não precisamos nem tentar. Estamos livres para outras atividades, que exigem pouco esforço e que trarão gratificação imediata. O trabalho nunca ficará pronto, a dissertação nunca será escrita, a arrumação pode esperar, e assim vai.

Mas todas essas situações não vão resultar, como dito acima, em mal estar, culpa e ansiedade? Sim. Mas trazem consigo não só prejuízo, mas outros ganhos subjetivos também. No caso de não ir visitar a tia idosa e doente, eu me esquivo de pensar na finitude, na vulnerabilidade da qual também estou submetido, no meu próprio envelhecimento ou no envelhecimento dos meus pais talvez. Não conseguir começar ou se não finalizo um trabalho, me permite manter-me na fantasia de que ele sairá perfeito. Uma obra prima em potencial. Se na prática temos que admitir nossas falhas e limitações, na hipótese podemos ser um prodígio.

O medo de não fazer a escolha perfeita está na base do funcionamento do “deixa pra depois”. Vivemos em constante espera. Como na letra do J.Quest, “vivemos esperando o dia em que seremos melhores…”. É comum dizermos que ainda não estamos preparados para isso, para aquilo, e de fato nunca estamos. Mas tentar tornar-se perfeito para assumir um desejo, uma tarefa ou uma nova vida será em vão, pois somos sempre inacabados e incompletos. A realidade sempre exigirá mais do que a teoria nos deu.