O ato de brincar é fundamental na infância, uma importante maneira de aprendizagem e de compreensão do mundo, além de fonte de prazer e forma de expressão. A brincadeira nos prepara para sonhar caminhos, para desejar profissões, para testar e despertar nossas vocações e serve ainda para antecipar o tempo, fazendo de conta que o futuro já chegou.
Na brincadeira tudo é possível. A criança consegue fazer de conta que já é “gente grande”, e pode até dispor de superpoderes, como raios exterminadores ou de uma força descomunal. Brincando, uma simples caixa de papelão pode se tornar um castelo suntuoso, ou um navio que atravessa os oceanos ou ainda uma nave espacial para fazer viagens intergalácticas. Fingir que é adulto ou ter superpoderes é um contraponto providencial para um pequenino que se sente frágil e desamparado, na condição ainda de pura promessa para o futuro.
No entanto, em pleno século XXI, meninas e meninos ainda são condenados, na infância, a se conformar com apenas meio futuro, através da imaginação e atividade lúdica. A diferenciação de brinquedo de menino e brinquedo de menina é algo que está arraigado há muito tempo em nossa sociedade, e foi agravada por motivos comerciais, pela indústria do brinquedo. Mas se homens sensíveis e mulheres fortes são uma referência ainda muito pequena nos brinquedos, no universo adulto, as mulheres já romperam com os limites da casa há muito tempo. Ainda estamos distantes, é certo, da erradicação da desigualdade de gênero. Mas hoje, graças às lutas e conquistas das feministas, enquanto mulheres dirigem países e grandes empresas, os homens já podem cozinhar, cuidar dos filhos e pasmem: expressar seus sentimentos!
A possibilidade de transitar entre as identidades de gênero é uma tendência. As mulheres já podem dirigir caminhões. Os homens trocam fraldas. Diante de tantas mudanças, dessa maior flexibilidade nos papéis que se atribui aos gêneros, é interessante perguntarmos pelas razões pelas quais as crianças ainda brincam aprisionadas em territórios imaginários, bem mais definidos que as fronteiras impostas aos adultos de hoje.
Para a psicanalista Diana Corso, a insegurança é a principal razão desse apego que ainda cultivamos quanto às identidades de gênero. A primeira causa de inquietude, segundo ela, se origina nos nossos próprios desejos, já que ninguém está a salvo, ainda que de forma muito velada, de desejos homoeróticos. Esses desejos estarão na base do amor entre amigos do mesmo sexo, da relação dos meninos com o pai e das meninas com a mãe, do amor por professores que eventualmente sejam do mesmo sexo, etc.
Depois vem a ideia de que a identidade de gênero é, no fundo, de difícil transmissão: na sinceridade da intimidade de cada um, a lucidez não permitirá que algum homem se sinta totalmente viril, assim como nenhuma mulher se sentirá verdadeiramente feminina. Então, como ter alguma segurança de passar os dotes de gênero aos nossos descendentes? Qualquer ambiguidade que nossos filhos demonstrem, nesse sentido, será sentida como prova de nossa própria incompetência em ser homem ou ser mulher.
Enxergar nos mais jovens o retrato de nossas próprias incertezas é dolorido e geralmente nos horroriza. Na realidade, essas questões levantam um dos maiores tabus da nossa cultura: a falsidade da dualidade e da oposição entre masculinidade e feminilidade. Estas identidades, de forma alguma, representam tudo o que somos e sentimos.
Temos tanto medo da queda da máscara dos dois sexos opostos porque ela é uma das poucas certezas que ainda temos cultivado sobre como se deve ser. Fora delas, a liberdade de opções apavora. Por isso, nos esforçamos em produzir nos nossos pequeninos as garantias de que não teremos reveladas todas essas fragilidades através deles.