O sangue envolve uma simbologia forte que está ligada tanto à vida, dada a sua abundância em nosso corpo, quanto à morte, já que a sua perda está ligada a doenças e ferimentos. Cada tempo e cultura atribuem a ele um significado distinto, mas em diversos casos, é possível observar a presença da figura feminina, por conta de ela sangrar uma vez por mês durante a fase adulta.
A menstruação, do ponto de vista orgânico, nada mais é do que a necrose do endométrio, que resulta numa descamação do tecido. Quando não ocorre a fecundação do óvulo, periodicamente, o fluxo menstrual ocorre naturalmente. A primeira menstruação acontece na puberdade, sendo, portanto, um sinal da maturidade biológica da mulher.
Já que é um processo natural, por que ela é vista como um incômodo, desagradável, um fardo ou até uma doença e não como um processo natural? Na realidade é preciso compreender que o desconforto que ela provoca não é só da mulher. A menstruação incomoda também os homens, e talvez os perturbe até mais do que às mulheres. Existe toda uma construção cultural e histórica em torno disso, colocando a menstruação como algo ruim, um incômodo que deve ser eliminado.
Já no Velho Testamento, advertia-se que “quando uma mulher tiver fluxo de sangue, sua impureza durará sete dias (…) tudo o que ela tocar ficará impuro.”. Simone de Beauvoir, no livro O Segundo Sexo, já denunciava que no momento em que é capaz de gerar, a mulher é colocada como impura, e que muitos outros rituais das sociedades primitivas colocavam a mulher em isolamento no primeiro dia de menstruação.
Em 1974, Stephen King escreveu um esboço de ideia, mas desistiu dela e jogou no lixo o rascunho. Algo naquela trama o assustava muito. Por sorte, sua mulher viu o rascunho no lixo e resolveu ler o que havia nele, segundo conta a psicanalista Diana Corso. O mestre do terror retomou a trama por insistência de sua esposa. A história todos conhecemos: é a de uma adolescente desengonçada que menstrua pela primeira vez no vestiário da escola. Sem saber o que lhe acontecia, Carrie, a Estranha, entra em pânico e recebe, num gesto de buling, uma chuva de absorventes de suas colegas. No auge da história, a garota é escolhida como rainha do baile de formatura, mas recebe além da coroa, um balde de sangue de porco na cabeça. A jovem reage com fúria. Usando poderes sobrenaturais, ela destrói toda a cidade, matando uns queimados, outros eletrocutados. Tudo começa com uma menstruação. O que existe de tão ameaçador na mulher e seus fluídos?
O ginecologista Elsimar Coutinho, em Menstruação, a Sangria Inútil, argumenta que o fluxo menstrual não é algo natural. Natural, para ele, é a gravidez. O médico, que defende que as mulheres não menstruem, parte do estudo de comportamento de homens primatas, e afirma que “a ideia da constante disponibilidade sexual das fêmeas humanas pré-históricas fundamenta a defesa de que as – também constantes – gravidezes evitavam que essas mulheres menstruassem durante suas curtas vidas”.
Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina, afirma que o homem exerce diferentes formas de dominação sobre a mulher. Esta dominação apresenta-se também quando o corpo da mulher e seus processos naturais são colocados como algo a ser higienizado. Será que a ideia de Coutinho não carrega consigo um desejo social de silenciar e apagar o corpo feminino? Será que não está de alguma forma alinhada a uma idealização de um feminino que, por não sangrar, não sente? Existimos, todos nós, graças ao poder e a renovação da menstruação, isso é algo que se oculta absurdamente quando se a vê como algo ruim, como um incômodo que deve ser eliminado.
Nas redes sociais, mamilos femininos são considerados ofensivos e imagens do sangue menstrual são proibidas. A mulher é colocada como potencialmente suja e perigosa. Diz-se que sua imagem provoca impulsos sexuais e agressivos, incontroláveis. Por isso é culpada dos abusos que sofre. O aplicativo Meu Ciclo, para Android e IOS, se propõe a ajudar a organizar o ciclo menstrual. Próximo do dia de menstruar, o App informa que “Tia Flo está chegando”. A discrição que se espera de uma mulher está na criação de termos suaves para substituir “menstruação”. “Naqueles dias”, “indisposta”, estar “de chico”, e assim por diante.
Tratar algo que é natural e positivo com repulsa pode ser um sintoma de que algo da posição feminina, do seu poder e de seu simbolismo, não foi bem elaborado. O fato da história de Carrie continuar sendo refilmada (a última versão em 2013) reforça essa ideia. A fantasia da feminilidade perigosa segue viva no imaginário do nosso tempo, em pleno século XXI. As mulheres, com seus perigosos fluídos ainda podem contaminar a sociedade e destruir tudo, como no filme.