Sem sombra de dúvidas, um dos momentos mais sombrios da nossa história foi a ditadura militar (1964-1985). Nos versos de Gonzaguinha, “Memória de um tempo onde lutar / Por seu direito / É um defeito que mata / São tantas lutas inglórias / São histórias que a história / Qualquer dia contará”. Vivemos um momento em que se faz urgente resgatar essas memórias, contar as histórias das quais nos fala o poeta.
Que memórias são essas? São muitas, como por exemplo, o fato do regime só ter se estabelecido e se consolidado devido ao apoio empresarial e civil que recebeu. Uma parcela da sociedade que acreditava ser importante manter seus privilégios, outras partes seduzidas pelo discurso de ordem e moralização, apoiaram um regime que promovia violações dos direitos humanos e cruéis arbitrariedades.
Em sessões de torturas intermináveis, agentes do estado que levavam uma vida comum, com suas esposas, filhos e amigos, se deleitavam com o martírio dos corpos de prisioneiros políticos. Mesmo os que não foram para o campo da luta armada, se fossem considerados opositores ou inimigos políticos, muitas vezes também eram levados à tortura. Outros simplesmente desapareciam. As violações foram se aprofundando, e em 1968, com o AI-5, os agentes do Estado já tinham o direito garantido de dar sumiço em qualquer cidadão sem ter de dar qualquer explicação. Os direitos civis haviam sido suspensos em nome da “segurança nacional.”
Depois de muita luta a ditadura cedeu, abriu caminho para o processo de redemocratização. No entanto, a democracia veio acompanhada de um novo silenciamento, proposto pelos próprios ditadores, chamado de “Anistia”, em que deveria haver um esquecimento mútuo. O problema é que em termos psíquicos, esse esquecimento não acontece. Em seu artigo de 1914, “Repetir, Recordar, Elaborar”, Freud nos mostra como tudo aquilo que não é falado volta como sintoma, tende a se repetir até ser pensado e elaborado.
Vivemos agora a repetição daquilo que foi silenciado. Por isso vemos ainda apoiadores da ditadura que protestavam contra a comissão da verdade, dizendo se tratar de vingança, já que houve anistia. “Que se investigue os dois lados”, reivindicam estes. Um raciocínio pobre, mas principalmente conveniente para os que não são capazes de reconhecer que instituições, prédios públicos, agentes de Estado e todo um aparato estatal e privado foram usados sistematicamente para aniquilar, torturar e matar. Como se não houvesse uma desproporção absoluta de forças.
Na noite passada a vereadora do PSOL Marielle Franco foi morta a tiros no Rio de Janeiro. Fontes da polícia dizem que todos os indícios indicam que o crime não se trata de um assalto, mas de uma execução. Quatro dias antes de morrer, Marielle denunciou ação da Polícia Militar na Favela do Acari. “Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior”, escreveu ela no Facebook.
As décadas de ditadura militar precisam ser discutidas e compreendidas, caso contrário o país continuará no mesmo caminho sintomático, correndo grande risco de nunca superar essa estrutura violenta e autoritária, mas apoiar e repetir as arbitrariedades transcorridas que continuam a nos atingir. O silêncio que tanto querem os fascistas assegura o convívio doentio com fantasmas do passado e permite que estes continuem rondando as instâncias psíquicas coletivas.
Marielle dedicou sua vida à luta contra a desigualdade, a injustiça e a barbárie. Foi executada por fazer de sua voz uma denúncia potente e constante contra as arbitrariedades do Estado, o genocídio do povo negro e a estrutura social doentia da qual acabou sendo vítima. Não podemos mais silenciar.