Envolvidos no individualismo do nosso tempo, compramos a receita de que todos os nossos problemas, ou pelo menos a maior parte deles, poderiam ser resolvidos se tivéssemos uma autoestima mais elevada. O delírio individualista que o discurso moderno vende é do sujeito autônomo, autodidata e que se autoconstrói. Aliás, a palavra “auto”, tão valorizada atualmente, não faz mais que confirmar a Sociedade Narcisista, do sociólogo Christopher Lasch, onde a autossuficiência é o grande ideal a ser atingido.
“É preciso estar bem consigo para estar bem com os outros”. Todos já ouvimos essa frase, e ela parece ser a essência dos manuais de autoajuda. Não sou contra estar bem consigo. A falácia, no entanto, está na dicotomia “eu” e “outro”. Não pode existir um eu se não houver alteridade. Apesar disso, o sujeito contemporâneo, atravessado pelo discurso neoliberal, pensa que é autônomo. Concebe-se como uma célula independente capaz de sobreviver sozinho, ou que ao menos seria capaz se tivesse mais autoestima.
Nos filmes hollywoodianos, geralmente o herói é colocado como um solitário, desacreditado por todos e que por isso só pode contar com sua própria inteligência, coragem e força para resolver seus problemas. Tendo por companheira de luta apenas a solidão, ao vencer os inimigos, toda sua potência e virtude são reveladas ao mundo.
O megaempresário de hoje, se começou sua carreira como camelô, grande é a sua proeza. A superação é valorizada, mas toda rede de apoio é desconsiderada: no discurso, basta se esforçar e conquistar o mundo. O céu é o limite. Essa valorização da trajetória individual cria uma falsa sensação, alimentando uma ideia de contradição entre o individual e o coletivo que na realidade não existe. A nossa dependência do outro é constitucional, faz parte do humano que somos.
Mas na sociedade individualista, nós apagamos isso. Vivemos sob um valor ideal de que cada um consiga construir seu destino e se faça por si próprio, sem depender de ninguém. Acreditamos que em nosso caminho não deixamos dívidas com o outro, como se não tivéssemos nenhuma herança de nossos antepassados. Maria Rita Kehl, psicanalista, afirma que esse projeto individualista é dado ao fracasso. Mesmo aquele que se acha Self Made Man, segundo ela, está sendo no mínimo ingrato, desconsiderando todo um entorno, ou então não está percebendo toda a rede de apoio que utilizou para chegar aonde chegou.
O individualismo é então um ideal, fundador de uma ideologia, mas incapaz de se cumprir. A ideia de que alguém faz seu destino e “chega lá” sem depender de ninguém é uma grande falácia. Viemos ao mundo totalmente dependentes. O bebê nasce com um corpo incoordenado, que é sentido como estranho. Em pouquíssimo tempo ele se levanta sobre os pés e começa a andar ereto. É preciso muita confiança em alguém, sustentado pelo seu olhar de amor e incentivo, para aceitar o desafio de levantar-se sobre seus pequenos pés e andar como os humanos. A coragem para afastar-se do chão, depois afastar-se da mãe e aprender a língua falada não se adquire sozinho. Desde cedo somos fruto da solidariedade e do trabalho da família. Nas palavras da psicanalista Diana Corso, desde bebê somos fruto de uma tarefa coletiva.
No livro Self Made Myth and the Truth about how the government helps individuals and business succeed (O Mito do Self Made Man e a Verdade sobre como o governo ajuda indivíduos e empresas a fazer sucesso) de Brian Miller e Mike Lapham, os autores argumentam que ninguém jamais ficou rico inteiramente sozinho nos Estados Unidos. Segundo eles, o governo criou o solo mais fértil do planeta para empreendedores. Mais de um terço dos 400 americanos mais ricos na lista da Forbes são filhos de ricos que nasceram com a bola na marca no pênalti. Miller e Chapman entrevistam também vários milionários que começaram pobres e admitem que sem os benefícios oferecidos pelo Estado não teriam saído da pobreza.
Acreditar de forma simplista que querer é poder, que com apenas força de vontade individual e uma boa dose de autoestima não há limites, sem nenhuma ajuda externa, é apenas ilusão. Há inúmeras vozes falando dentro de nós. São as vozes dos nossos pais, dos ancestrais que falavam com nossos pais, dos amigos, dos professores que tivemos, e muitas outras. A tão procurada autoestima e a força de vontade só acontecem quando essas inúmeras vozes aprovam e reconhecem o que fazemos. Sendo o homem um ser social, suas saídas são coletivas e ele é sempre fruto de um tempo e de uma história que o precede. Fruto, nas palavras de Lacan, “daquilo que estava lá, há um bocado de tempo, antes que viéssemos ao mundo, e cujas estruturas circulantes nos determinam como sujeitos.”