Senhor Volante: sobre trânsito e psicanálise

Carlos, um motorista comum, vinha dirigindo seu carro em velocidade razoável, nem tão rápido, nem devagar. Chegando próximo ao cruzamento, notou que outro carro seguia pela travessa. O veículo que se aproximava não estava acima rápido, mas também não desacelera, apenas segue em velocidade constante, sem dar sinais de ter visto o carro de Carlos vindo ao seu encontro.

Este, mesmo notando que o condutor possivelmente não o percebeu, também não freia. Pelo contrário, sentindo que estava “na sua razão”, foi tomado por uma raiva instantânea, e preferiu acelerar, porque afinal, estava na preferencial, estava certo e seu carro estava no seguro. Situações assim podem soar de forma estranha, afinal, seria fácil evitar o acidente. Mas elas são mais comuns do que pensamos. Como isso acontece?

Motoristas transitam pelas estradas concentrados, quase sem dispersão. Atentos a rotas e talvez às instruções do Wase, obstáculos como valetas, lombadas e buracos no asfalto exigem apenas um leve desvio, uma pequena mudança de marcha. Do lado de fora, a vida acontece, fluindo em muitas dimensões, mas estar dirigindo um carro pode dar a sensação de um isolamento, despertando um sentimento de poder. De dentro do carro, a impressão de segurança se mistura com um tipo de despersonalização: o trânsito é formado por uma multidão de anônimos, onde ninguém conhece ninguém.

No tempo impaciente e contrariado de um sinal vermelho, há breves encontros em que os motoristas são obrigados a se enxergar. Mas a identidade não é mais corpo, é o carro: a loira do Audi, o rapaz da Saveiro, ou aquele do Gol prata. O carro funciona como uma carapaça, um avatar, através do qual expressamos e também ocultamos algo de nós. Parar nos deixa acuados, nos desnuda. Isolados, minimizamos o encontro, maldizendo tudo o que obstruir esse grande fluxo da impessoalidade.

No curta O Senhor Volante, um clássico da Disney, podemos ver em pouco mais de 6 minutos Pateta se transformando de Sr. Walker, um personagem doce, simpático e gentil, para o Sr. Wheeler, uma pessoa extremamente descontrolada, agressiva, e absolutamente intolerante, tanto em relação aos outros motoristas quanto aos pedestres. Ao ligar o motor de arranque, a transformação começa, como no filme O Médico e o monstro. 

Assim como no desenho, nós também tendemos a esquecer a nossa natureza primeira, de pedestres, vulneráveis e sem nenhum escudo protetor. Caminhar, pedalar, ou mesmo usar transportes coletivos são formas de locomoção que não nos privam de olhar as sutilezas do percurso, nem de enxergar a humanidade do outro. Quando bebês, a fantasia que domina o psiquismo é a de que o mundo é uma extensão de nós mesmos.

Crescer exige cair desse lugar de onipotência, suportando a existência de outros corpos. Estar envolto nessa cápsula protetora de metal traz uma equivalência simbólica ao útero materno, e pode facilmente nos colocar em contato com resquícios de épocas em que funcionávamos ainda de forma muito rudimentar, em que na fantasia, o mundo era nosso e não era necessário negociar com outros, nem conter impulsos de agressividade.

Para assistir o curta “Senhor Volante”, acesse aqui: https://www.youtube.com/watch?v=fW3m5I-5d-E