O Cão e o Mendigo

 

No caminho para o trabalho, Ana* passava todos os dias por um imóvel abandonado, que antes era uma concessionária de veículos*. No terreno do imóvel, que estava tomado por mato alto, num espaço bem reduzido cercado por um alambrado, havia um cachorro, um pitbull branco e marrom que fazia solitário a guarda do terreno. Na sessão de terapia, Ana traz seu percurso de todos os dias. Ela me conta que frequentemente fica tocada pelas coisas erradas. Pergunto o que ela quer dizer com coisas erradas, ela responde que se emociona por coisas ridículas: – quando passo por ali – conta Ana – e o vejo amarrado e solitário, sem ter com quem brincar e em território desacolhedor, me corta o coração.

É claro que intervi dizendo não entender porque ficar tocada por uma situação dessas seria errado ou ridículo, mas ela logo continuou: é que um pouco pra frente é um local onde dormem vários moradores de rua. Vivem ao relento, dormem entre trapos, em papelões sobre o chão duro e algumas vezes em meio a restos de comida. No entanto, meu coração amolece é pelo cachorro. Sei da difícil condição dos mendigos, andarilhos e moradores de rua, mas não me compadeço, diz Ana.

Acredito que muita gente, ao ler essa coluna, se identifique com Ana nesse aspecto. A “injustiça” dos sentimentos dela deve ser partilhada por muitos. Quando pergunto para ela porque a maior sensibilidade para o cão, ela não sabe ao certo, mas arrisca alguma explicação: talvez porque os andarilhos tenham escolha, são livres, enquanto aquele pobre animal está isolado não por escolha dele.

O que ocorre, no entanto, é que os animais, principalmente os domésticos, são para nós depositários de inúmeras projeções. Podem representar, num nível inconsciente, as crianças que fomos ou ainda os filhos que se teve ou não. Freud esclarece que tomamos por objeto de investimento alguém que é como nós, ou como fomos, ou ainda como nós gostaríamos de ser. Disso decorre que o amor e a compaixão se dirige também a pessoa que foi uma parte de nós mesmos, pais, mães, cuidadores e também nossos queridos companheiros de jornada, os animais.

Nesse momento, retomo para Ana parte de sua infância. Lembro a ela o fato de ser filha única, das narrativas de tantos momentos de brincadeira solitária que havia vivido quando pequena, de como sentiu falta da atenção de seus pais, que trabalhavam muito e de como desejava um irmão ou irmã, mas nunca teve.

Será que ao se deparar com o cão, solitário, sem os donos para lhe oferecer carinho, Ana o tomava como objeto de sua própria tristeza? É bem provável que sim. A situação do cão sozinho ressoava mais forte nela do que a dos pobres andarilhos, pois trazia à tona resquícios de sua própria infância.

Algum tempo depois, Ana passou a chamar um pequeno filhote de seu: adotou um cachorro. Muito se critica os excessos de zelo que se tem hoje em dia com animais de estimação, mas não concordo com a maioria dessas críticas. Comemorei com Ana a novidade. Também tenho meus quatro patas, e ter o privilégio de poder “dialogar” com essas criaturas, adivinhar suas necessidades e desejos, acaba sendo uma inestimável experiência amorosa.

A cura, para Freud, só se dá em uma relação de amor, seja na análise ou fora dela, seja essa relação de qualquer natureza. O amor ao animal nos ensina fidelidade, constância e retribuição, baseada em uma forma estável de “ser como nós… porém um outro”. Por isso, amar funciona melhor que muitos antidepressivos, além de não ter contra indicação.

*O nome e o local são fictícios